Por Luísa Peters
Pode até parecer um evento de um passado longínquo, mas um dia desses, no ano de 2020, o mundo parou.
A pandemia de COVID-19 acelerou processos de questionamento do status quo e de mudanças sociais em tempo recorde. Muito do que até então fazia sentido para a maioria dos cotidianos, parou de funcionar: ir trabalhar no escritório, usar maquiagem, calçar um salto alto, comer em restaurantes e, claro, sem contar o ‘freio de mão puxado’ sobre as economias de praticamente todas as nações globais.
Não à toa, muitas das estruturas sócio-políticas e culturais seguiram, desde então, estremecidas pelo vislumbre de que o funcionamento do mundo poderia ser diferente, já que teve seu fluxo drasticamente interrompido por uma questão mais nobre, acima de todas as relações: a sobrevivência.
Apertando o botão de fast foward e as discussões, em 2024, dividem o mundo entre trabalhadores que descobriram o serviço remoto e perceberam que tiveram mais qualidade de vida durante a pandemia, e gestores a mando de governos e bilionários que querem retomar o fluxo de onde parou.
E nesse turbilhão de transformações e debates que estamos presenciando, a verdade é que tradições que pareciam óbvias, necessárias, imbatíveis, começam, agora, a ter sua legitimidade e validade questionadas.
Se alguém me contasse hoje que restaurantes de luxo, do mundo inteiro, almejam ser visitados, avaliados e premiados com uma estrelinha fictícia – como aquela que a professora nos dava no jardim de infância por fazer a tarefa – por uma empresa fabricante de pneus, eu diria que esse alguém está com problema de saúde mental, afinal, não teria sentido algum.
Por mais que a fabricante de pneus convide especialistas, quem realmente os atribui o ranking, a hierarquia de avaliar o que um Chef, um profissional que está na linha de frente, está produzindo??
Calma, não estou dizendo que a Michelin não tem mérito. Só acho que estamos passando por um momento mundial de reavaliação dos direitos e deveres “institucionais” cujas tradições já não parecem carregar a mesma força.
E não estou sozinha.
O restaurante Il Giglio, localizado em Lucca, na Itália, na figura de seus 3 chefs e sócios, optou por, simplesmente, devolver sua estrela Michelin, depois de 05 anos sustentando-a como honraria gastronômica.
A justificativa? A concessão da estrela impõe regras, formalidades, que os sócios alegam acabaram por tirar toda a alegria da empreitada, até porque o público já ia com uma expectativa específica, definida pelo Guia, mais que pelo restaurante.
“Queremos voltar a ser um restaurante para todos, sem a pressão de ter que manter uma formalidade que não é nossa”, explicou Stefano Terigi, um dos sócios, à Vanity Fair.
Essa nem foi a primeira vez que um Chef recusou-se a manter a estrela de seu restaurante. Marco Pierre White, em 1999, foi o primeiro a fazê-lo. Alain Senderens e Philippe Gaertner, em 2005; Olivier Douet, em 2008, após uma crise financeira; Frederick Dhooge, em 2014; Sébastien Bras, em 2017, que solicitou ser deixado de fora da edição seguinte do Guia Michelin alegando que já era muita pressão manter uma cozinha de fine dining (do inglês, “jantar fino”, usado para definir a categoria de padrão elevado); e Magnus Nilsson, em 2019, Nilsson que voluntariamente fechou seu restaurante 2 estrelas para passar mais tempo com a família.
É até impressionante que o Guia Michelin tenha ficado tão imune a questionamentos e críticas sobre a validade e contribuição de sua atuação, mesmo depois do suicídio por dois Chefs, Bernard Loiseau em 2003, depois de boatos de que perderia uma das comendas, e Benoît Violier, em 2016, que, de acordo com amigos, não aguentou a pressão de manter-se dentro das expectativas.
Por que não encerrar?
Bom, primeiramente, transformações que abalam estruturas tradicionais levam tempo, e, segundo, porque, sim, o Guia Michelin ainda é uma das maiores referências mundiais de qualidade, o que impacta diretamente na lucratividade dos restaurantes premiados, até porque o aval da Michelin motiva os clientes a pagarem o que for, o que pode chegar a dobrar a rentabilidade do restaurante, independentemente de qualquer atuação da gestão.
Conclusão: o mercado gastronômico está mudando conforme a sociedade revisita seus conceitos e revê seu orçamento. Pagar preços astronômicos para uma experiência gastronômica pode não estar mais na lista de prioridade de várias famílias, por mais apaixonadas por gastronomia que sejam.
Fica a reflexão, porém. Se ganhar uma estrela está começando a ser visto como perda de liberdade, talvez seja uma questão de tempo até Chefs e proprietários buscarem outras formas de valorização.
@Lulupeters_ é jornalista freelance e blogueira raiz, escreve sobre comida há quase 20 anos. Com passagens por jornais e rádio, essa brasiliense elogia, critica e propõe reflexões sobre o mercado gastronômico.
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